Na Cracolândia, o fim do convite ao convívio

por Maria Lígia Pagenotto — CartaCapital
São Paulo perde projeto que levou arte e afeto a uma legião de excluídos da região mais treta da cidade.
Um outubro especialmente chuvoso encheu de poças o pedaço da cidade conhecido como Cracolândia, na região da Luz, Centro de São Paulo. “Há 20 anos isso é assim”, diz um homem sentado na porta de um bar da Rua Barão de Piracicaba.
Desanimado, observa os que tentam se esquivar da água suja acima do limite da guia. Não quer se identificar, mas conta que “vira e mexe aparece um caminhão pra desentupir bueiros, mas nunca desentope. Ninguém liga pro que acontece aqui”.
Quem caminha distraído pelo bairro tem a mesma sensação. Mas um visitante atento identifica que um pé de maracujá cresce com impressionante altivez perto de um bar. Que nas paredes e muros há grafites, lambe-lambes, frases e poesias de artistas usualmente só vistos em áreas nobres. Novidades que chamam atenção na paisagem de um lugar que a maioria finge não existir. 
No entorno do “fluxo”, onde se concentram usuários e comerciantes de drogas, com predomínio do crack, ruas foram palco de sessões de cinema, debates, saraus musicais e poéticos, danças e plantios coletivos em canteiros antes abandonados. As reuniões preparatórias e a realização dessas ações por  vezes juntaram moradores, médicos, policiais, dependentes químicos, crianças e comerciantes.
Está claro que algo novo ocorreu na Cracolândia, para além das políticas de saúde pública e das intervenções que polícia e grupos religiosos executam há anos, na tentativa de moralizar a área. Essa movimentação que deu cor e alegria a um cenário habitualmente sombrio e cinza, além de estigmatizado socialmente, tem por trás profissionais do projeto Casa Rodante, desenvolvido pelo coletivo artístico casadalapa.

Desde 2014 até este outubro chuvoso, uma parceria do grupo com a Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de São Paulo viabilizou essa ação que somou esforços às políticas de redução de danos do programa De Braços Abertos. Um dos seus idealizadores, o cenógrafo e grafiteiro Julio Dojcsar, explica que a Casa Rodante aceitou o convite da secretaria e embrenhou-se “no território mais treta da cidade de São Paulo”. 
A “casa” é rodante porque foi construída sobre uma caminhonete para assim estabelecer diálogos com a vizinhança. “Somos artistas que acreditam que a cidade é para ser ‘desproibida’”, explica Dojcsar. No início de outubro, ele postou no Facebook uma comovida despedida do projeto. Com a troca de comando na prefeitura, o De Braços Abertos e suas parcerias serão desativados.
“Não consigo pensar essas ruas sem o pessoal da Casa Rodante”, diz Vilma de Freitas, moradora da ocupação Esperança da Paz e mãe de cinco filhos. “Eles trouxeram vida e alegria, meus filhos aprenderam muito mais com eles do que com a escola. Foram para a Pinacoteca, Masp, Memorial da América Latina. E foram de táxi, imagina a alegria deles, que nunca tinham andado num carro?” Pamela Freitas da Paixão, de 14 anos, e Thiago dos Santos, de 11, endossam o inconformismo. “A gente dançou e brincou muito com eles, não pode acabar”, diz Pamela.
A psicóloga Laura Shdaior, que trabalha com os usuários no De Braços Abertos, ressalta que a Casa Rodante trouxe a possibilidade de desconstruir parte do discurso estagnado sobre a Cracolândia. “Seu grande mérito foi o de fomentar o relacionamento entre as várias pessoas que moram ou circulam por ali. O usuário precisa ser visto para além da droga e, por meio do diálogo e da troca, o projeto conseguiu isso.”
Cristiano Ribeiro Vianna, psicólogo da Casa Rodante, define o território hoje como “um grande quilombo”, referência à crescente presença de refugiados vindos da África instalados ao lado de muitos imigrantes latino-americanos. “É uma população muito heterogênea que, em comum, coleciona um histórico de humilhações sociais e exclusão.”
A casa foi um convite ao convívio. A caminhonete chama atenção pelos cartazes lambe-lambe. Está equipada com bancos e mesas, som, cinema, brinquedos e livros. Quem se aproxima é acolhido com água, café e uma conversa olho no olho. A integrar a trupe estão o palhaço Clerouak, o educador Ricardo Carvalho e os responsáveis pela roça urbana Cauê Maia e Marina Alegre. Artistas grafitam muros, bordam e escrevem poesia. 
Cosme Aleixo da Silva, ex-marido de Vilma, promete lutar pela permanência do projeto. Tão logo o prefeito João Doria assuma, garante, irá à Câmara de Vereadores. “Vou falar com esse vereador que veio aqui pedir voto pro Doria”, diz, enquanto mostra um cartaz do político. “Quem tá no fluxo é porque perdeu tudo. Não tem mais família, nada. Os artistas trouxeram alegria e vida pra eles, mudaram isso aqui, minhas crianças foram mais felizes. Como eles vão embora?”, questiona, inconformada, a cidadã Vilma de Freitas. 
*Reportagem publicada originalmente na edição 927 de CartaCapital, com o título "O fim do convite ao convívio"

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