A OAB e o golpe, mais uma vez

Por Rogerio Dultra dos Santos
O processo inexorável da proletarização das profissões liberais no mundo contemporâneo fez a OAB sucumbir não somente a pautas corporativas, mas se submeter cegamente ao golpismo.
E a OAB não defende hoje o impeachment – como defendia o golpe em 1964 – por minutos de fama na Globo, que relegou ao rodapé de suas notas enviesadas o fato profundamente vexaminoso.
Talvez, como em 1964, a OAB o faça por questões insondáveis de seus próceres. A história saberá dizer, talvez muito antes do que se imagine, dado, inclusive, o fator do vazamento de escutas telefônicas, que parece chancelar alegremente.
Alguns poderiam pensar, com razão, que a posição do Conselho Federal da Ordem deveria ser a de defender a prerrogativa de função de seus membros contra a quebra de sigilo telefônico promovida pela Operação Lava-jato, ou repudiar a criminalização de colegas por conta das manifestações de 2013, ou ainda a de investigar a perseguição dos Advogados Populares pelo interior do país.
Não foi esta a posição da OAB.
Ela, no auge de uma crise institucional sem precedentes, resolveu jogar gasolina na fogueira e defender o impeachment mesmo a comunidade jurídica tendo dúvidas – pelo menos dúvidas – sobre a constitucionalidade ou a legalidade do pedido.

Para ser correto com a história, apesar de, em momento de fragilidade institucional, às vésperas do golpe de 1964, chancelar a ascensão dos militares, a OAB reagiu ao AI-5 em 1968. Voltou às boas com o Estado de Direito.
Até a semana anterior, passados quase 50 anos de convivência mais ou menos intensa com a Democracia, a Ordem mantinha o ritmo. Algumas de suas seccionais, como a OAB-RJ, resolveram, inclusive, passar a limpo a história e instituíram Comissões da Verdade, que investigaram o papel criminoso e vil da ditadura.
Mas o fato é que as corporações profissionais dificilmente engendram uma movimentação 100% republicana. A pauta dos interesses internos parece sempre dragar qualquer possibilidade de que se oriente a corporação por um valor maior que as prebendas de seus associados.
O interesse associativo só parece se transformar em interesse público na quimera de um Tocqueville. A realidade da Ordem, como se diz, é muito mais prosaica e muito menos “Democracia na América”.
E, veja, falo isto levando em conta que uma boa parte dos advogados brasileiros fez faculdades de direito que eventualmente explicaram em algum momento o que significa princípio da legalidade, obediência à lei e devido processo legal. Ensino jurídico que sempre chancelou o papel de elite que os advogados deveriam representar na condução de seu país para a civilização constitucional.
Por necessidades funcionais e por orientação de formação, os advogados deveriam, em linha de frente, resistir ao processo de fragilização de garantias processuais constitucionalizadas – processo este escamoteado dentro das “medidas anti-corrupção”, defendidas como se fossem os dez mandamentos bíblicos do MPF.
Este papel de subordinação servil que a OAB hoje se presta em relação a instituições – ou parcelas de instituições – que são muito mais torpes em seus objetivos subversivos da ordem democrática, já entrou para a história dos fatos que geram profunda vergonha alheia.
A coisa boa deste lamentável episódio é que uma parte significativa e cada vez mais publicizada de advogados e advogadas por todo o Brasil se manifesta contrariamente à posição de seu presidente, ou seja, se manifesta contra o impeachment.
Fazem a política que foram traçados a realizar: desde a fundação dos cursos de direito no Brasil, os advogados foram cevados para se tornar homens e mulheres de Estado, para ocuparem seu lugar na República. Para, em outros termos, fazer a grande política.
Pululam, desta forma, as manifestações de advogados isolados, de grupos de juristas e, inclusive, de representantes formais da Ordem que, vencidos no voto, mas hígidos em seus brios, lutam pela legalidade.
Mas, olhando para o estrago feito pela OAB nacional, onde foi que a porca torceu o rabo? De onde surgiram este conselheiros medonhamente ignorantes da Constituição e da ordem jurídica de sua pátria? Talvez não tenha sido nem da corporativização de seus interesses, nem da precarização do ensino jurídico.
Talvez, como diz um colega jurista da universidade, tal débâcle advenha de uma razão cínica, da compreensão torta de que o mundo tenha se transformado num eterno “caô”, numa enganação constante, que faz perecer qualquer tentativa de se crer, por exemplo, que as instituições realizem o que dizem que realizam – o “caô” da necessidade de fixação da lei enquanto parâmetro civilizacional.
Se a mentira é geral e se a lei é relativa, por que funcionarmos através da verdade da Constituição? Por que não torcermos até a ruptura para alcançarmos, de novo cinicamente, nossos intentos egoísticos independentemente de parâmetros normativos?
A razão cínica que está dirigindo a OAB na direção da chancela do golpe é o mais profundo sintoma de que o individualismo do capital inflamou e está levando à infecção generalizada a nossa ideia de coisa pública.
O interesse bem compreendido deTocqueville sucumbe, aqui, a passos largos, às negociatas insondáveis que fizeram a Ordem rasgar a sua própria trajetória e chafurdar com a lama do golpismo. Mais uma vez, precisaremos de décadas para perdoar tamanha falta de responsabilidade. Ou quem sabe, advogados e advogadas corajosos, isolados de sua própria casa, consigam levar o seu nobre ofício à redenção, pela sua defesa intransigente da legalidade e da democracia. Fonte: Democracia e Conjuntura.

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