Jornalismo chapa branca em Fortaleza

Por Rafael Tomyama - Site Ver. Deodato Ramalho:
Cara Daniela Nogueira (Ombudsman do jornal O Povo),
Antes de mais nada, gostaria de parabenizá-la por aceitar receber o "bastão" do que considero uma importante iniciativa mantida pelo jornal O Povo no sentido de mais democratização da mídia.
Gostaria de, neste nosso primeiro "encontro", abordar o tratamento que o veículo (e o concorrente) dispensou a uma pauta na semana passada: o anúncio do prefeito de Fortaleza, Roberto Cláudio, da política ambiental de sua gestão. A entrevista coletiva ocorreu na sexta-feira, 10 e, portanto, repercutiu no sábado, 11.
A surpresa começou no contraste das manchetes dos jornais O Povo: "Roberto Cláudio regulamenta 21 parques na Capital" http://www.opovo.com.br/app/opovo/cotidiano/2014/01/11/noticiasjornalcotidiano,3189155/roberto-claudio-regulamenta-21-parques-na-capital.shtml e Diário do Nordeste: "Dez parques municipais são regulamentados em Fortaleza" http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=1358752 São 10 ou 21 afinal?
Quando se comparam os textos em busca da explicação para esta diferença, chega-se a uma incongruência maior ainda: O DN afirma que a regulamentação contemplou 7 parques já existentes: "Adahil Barreto, Parreão, Rio Branco, Iguanas, Guararapes, Pajeú e Liberdade (Cidade da Criança), além de outros que foram oficialmente criados: o Parque das Lagoas (que inclui 11 áreas da cidade), o Maceió e o Rachel de Queiroz, (...)" A conta do DN dá 10 porque considerou um único "parque" com 11 lagoas (que não diz quais são). Somando-se tudo (7+11+2) resultam em 20 locais.
Já O Povo diz no início da matéria que dos tais 21 parques, seis já existem, mas ao final só relaciona cinco: "Rachel de Queiroz, Rio Branco, Parreão, Adahil Barreto, Parque da Liberdade (Cidade da Criança)" e outros 15 foram "criados e regulamentados: Parque das Iguanas, Riacho Maceió e os parques das seguintes lagoas de Fortaleza: Parangaba, Porangabussu, Messejana, Maria Vieira, Itaperaoba, Mondubim, Opaia, Catão, Maraponga, Papicu, Passaré e Jacarey." Estão listadas aqui 14 áreas. Que somadas às outras cinco resultam em 19.
10, 19, 20 ou 21?
Oficialismo
O que os títulos e os conteúdos das matérias revelam é um tratamento pouco cuidadoso e apressado do assunto. E pra dizer a verdade viciado no oficialismo, que é a tendência a engolir a versão das autoridades como verdade irrefutável e absoluta. Sem checagem e sem questionamento.
Prova disso está no anúncio publicado no dia anterior ao evento http://www.opovo.com.br/app/fortaleza/2014/01/09/noticiafortaleza,3188434/nova-politica-ambiental-de-fortaleza-deve-ser-apresentada-nesta-sexta.shtml que já deixava antever a mera reprodução acrítica preguiçosa do release do órgão oficial http://www.fortaleza.ce.gov.br/noticias/seuma/prefeitura-apresenta-politica-ambiental-de-fortaleza O blog do Roberto Moreira também procedeu da mesma forma: http://blogs.diariodonordeste.com.br/robertomoreira/prefeitura-apresenta-politica-ambiental-de-fortaleza/
A matéria do DN do dia 11 ainda publicou um certo contraponto, com as desconfianças de conhecidos ambientalistas de que tais medidas podem nem sair do papel.
Aprofundamento
Perdeu-se a oportunidade do questionamento a uma gestão que até agora, como em outras áreas, ainda não disse a que veio, está no reino do discurso e das promessas. Isso pra não falar na obra do controvertido viaduto na beirada do Cocó, pra dizer o mínimo.
Passou desapercebido também pelo menos duas fragilidades do discurso dos gestores presentes ao evento. No vídeo que consta da matéria do DN, a Secretária de Urbanismo e Meio Ambiente, Águeda Muniz, afirma que estão sendo regulamentados "10 ou 11 parques, etc." Como assim, são 10 ou são 11? A titular da pasta não sabe ao certo? E por que?
Aparentemente, então, a confusa apuração dos veículos já começou da fonte. O veículo não teve acesso às regulamentações? (leis? decretos? portarias? kd?) Ou então, por que não as pediu?
À Secretária é atribuída também uma informação ao longo de ambas as matérias, que os parques serão regulamentados conforme prevê o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). A Secretária provavelmente desconhece o SNUC e a reportagem também, porque a este tipo de "parque urbano" de pequena dimensão, antropizado e de baixa relevância ambiental e paisagística. em que pese sua importância local, não se enquadra no escopo de uma "unidade de conservação" seja de proteção integral, seja de uso sustentável. Favor acessar e checar a lei do SNUC: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9985.htm
O prefeito Roberto Cláudio, no mesmo vídeo, afirma que vai criar o "fator verde" para certificar a construção civil que incorpore a variável ambiental e também a sede administrativa, com museu, da APA da Sabiaguaba. Uma rápida consulta aos arquivos do próprio jornal O Povo constataria que estes são projetos da gestão passada (com outra abrangência) http://www.opovo.com.br/app/opovo/fortaleza/2012/05/09/noticiasjornalfortaleza,2835676/projeto-cria-1-bairro-ecologico-de-fortaleza.shtml e http://www.opovo.com.br/app/opovo/fortaleza/2012/05/29/noticiasjornalfortaleza,2848157/lancado-selo-verde-para-a-construcao.shtml e http://www.opovo.com.br/app/fortaleza/2010/12/29/noticiasfortaleza,2083618/prefeita-luizianne-entrega-plano-de-manejo-da-sabiaguaba-nesta-quarta.shtml
Fragilidade
No mesmo dia 11, saiu uma matéria "Oposição rebate crítica do governador sobre Cocó dos ricos" http://www.opovo.com.br/app/opovo/politica/2014/01/11/noticiasjornalpolitica,3189120/oposicao-rebate-critica-do-governador-sobre-coco-dos-ricos.shtml que pretenderia dar voz à "oposição" ao governador Cid Gomes (PROS) que havia atacado seus críticos como elitistas (que se preocupariam apenas com o Cocó dos ricos). Embora a manchete e o abre se refiram às falas de opositores, os dois primeiros parágrafos retomam o ataque de Cid, ao invés de apenas contextualizar ao final. O que revela mais uma vez o viés oficialesco.
O texto fica ainda mais primário no trecho do segundo parágrafo que informa que as "declarações acabaram gerando desconforto nas pessoas que são contra a construção dos viadutos (...)" Soa maniqueísta uma análise subjacente de que as "pessoas" opositoras de Cid o sejam porque são "contra viadutos".
De todo modo, o enfoque da autora centrou-se muito mais nos adjetivos (destemperado, agressor, arrogância, leviano, etc.) do que no conteúdo das críticas dos opositores (João Alfredo se diz credenciado por ser lutador histórico e Cid não enfrenta os ricos, apenas os pobres; e Eliane Novais criticou a sua postura como gestor (com equidade) e a cobrou a legalização do Parque).
Conclusão
Em suma, entre a falta de inspiração na apuração ou na redação, o jornal O Povo revela o despreparo e desinteresse de seus profissionais pela centralidade do tema ambiental na conformação da tecitura urbana e uma perigosa adesão ao "atestado de autoridade" que compromete o seu pretenso perfil de veículo sério e independente, que costuma propagandear por aí.
Rafael Tomyama é ambientalista e graduado em jornalismo
Talvez a que melhor esteja enquadrada no SNUC seja a ARIE (Área de Relevante Interesse Ecológico) do Cocó, projeto do vereador oposicionista João Alfredo (PSol-CE), sancionada pela então prefeita Luizianne Lins (PT), motivo de disputa judicial com grupos empresariais imobiliários e - não surpreendentemente - "esquecida" pela atual gestão à frente da Prefeitura de Fortaleza

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