É um atalho, mas, para onde?

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Reproduzido do Retrato do Brasil - Edição n° 67
A Missão Espacial Completa Brasileira era um programa estratégico para o País. Foi substituída por um plano casuístico, que se pretende comercial, mas não se sabe para onde ele vai
O programa espacial brasileiro tem uma história de conflitos e contradições. Pode-se dizer que um de seus criadores, no início dos anos 1950, é o brigadeiro Casemiro Montenegro (1904–2000), o primeiro comandante militar do então Centro Técnico de Aeronáutica (CTA) — hoje Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial, subordinado ao comando da Força Aérea Brasileira — e idealizador do Instituto Tecnológico de Aeronáutica, o ITA, uma das mais famosas escolas de engenharia do País, ambos situados num campus próximo à rodovia Presidente Dutra, na entrada da cidade paulista de São José dos Campos.
Montenegro foi afastado do comando do CTA em 1965, não apenas por não fazer parte da ala militar vitoriosa com o golpe que depôs o presidente João Goulart, no início de 1964, mas também por não concordar com o rumo que se pretendia imprimir àquela base militar, de funcionar quase como uma oficina de reparos e manutenção dos aviões do então Ministério da Aeronáutica. A troca de Montenegro pelo brigadeiro Castro Neves, um oficial anticomunista linha-dura, que impôs um regime de quartel também aos civis, alunos e professores da escola de engenharia, levou a instituição à sua “pior hora”, como diz a publicação oficial da entidade de antigos alunos do ITA, que fez em 2001 um apanhado daqueles acontecimentos.
Os próprios reitores da escola acabaram conspirando contra Castro Neves — foram quatro em menos de um ano e um dos últimos se encontrou secretamente com o então presidente, o general Castello Branco, para defender a substituição do homem que via conspiração comunista por toda parte. Foi então que surgiu na nossa história um herói improvável, o brigadeiro Paulo Victor da Silva (1921–2009), que dirigiu o CTA de 1966 a 1973.
Participante do grupo de oficiais da Aeronáutica que deu cobertura ao jornalista Carlos Lacerda na conspiração que levou ao suicídio do presidente Vargas, Paulo Victor não só pacificou a escola como foi decisivo tanto nos esforços que levaram ao decreto de criação da primeira grande fábrica de aviões do País, a Embraer, em 1969, como na criação das bases para um programa espacial independente brasileiro, com acordos industriais e bolsas de estudo para várias dezenas de engenheiros e cientistas saírem pelo Brasil e mundo afora com a missão de ajudar a equacionar as questões tecnológicas centrais para a construção de foguetes brasileiros capazes de colocar em órbita satélites também feitos no País.
Do CTA de Paulo Victor saíram projetos como o Pequeno Computador Digital, para provar a possibilidade de projetar e construir computadores no Brasil; o desenvolvimento dos primeiros esboços de um reator nuclear brasileiro pelo comandante da Marinha Othon Pinheiro, que acabou sendo a saída para a criação de tecnologia nuclear local, depois que fracassou o Acordo Nuclear Brasil–Alemanha de 1975; e o desenvolvimento e mesmo a criação de várias empresas de tecnologia avançadas.
Grande parte do que o CTA tinha em escala de laboratório para a metalurgia de metais especiais necessários ao programa espacial, por exemplo, foi replicada, em escala industrial, em empresas com as quais o centro fez acordos, como Bardella, Villares, Usiminas, Termomecânica e Termometal.
Surgiram a Tecnasa, para a fabricação de radares, posteriormente envolvida no projeto do AMX, um avião militar a ser desenvolvido num acordo Brasil–Itália; a Mectron, da fusão de pequenos fabricantes de mísseis, que desenvolveu o Piranha, uma arma ar-ar, guiada pelo calor da radiação infravermelha emitida por seu alvo.
Numa das quatro grandes entrevistas dadas à publicação dos ex-alunos do ITA, já citada, Paulo Victor passou em revisão o programa Sonda, que começou com um foguete lançado pela Avibras, uma empresa privada, em 1965. Explicou que o desenvolvimento da família Sonda transformou-se num programa estatal, sob sua gestão.
O Sonda I era, digamos assim, um foguetinho copiado de um modelo americano, de menos de 4 metros de altura, 60 quilos de peso, 12 centímetros de diâmetro e capaz de carregar uma carga útil de menos de 5 quilos. Mais de 200 dele foram lançados entre 1965 e 1977, quando foi aposentado. O Sonda I foi seguido no CTA pelo II, ainda sob a gestão dele e, depois, pelo III e pelo IV. O Sonda IV, já previsto, mas iniciado de fato três anos após Paulo Victor sair do CTA, já era uma máquina de respeito: 11 metros de altura, peso de 7,3 toneladas, variando entre 0,5 e 1 metro de diâmetro, nos quatro foguetes que foram construídos com capacidade de levar uma carga útil de até 500 quilos a 730 quilômetros de altura. Tinha 2 mil peças mecânicas, o dobro do Sonda III; usava um novo tipo de aço, que, além do ferro e do carbono normais, tinha cromo, níquel, molibdênio e alto teor de silício, o que lhe dava resistência maior, mais maleabilidade, soldabilidade e estabilidade dimensional e, ainda, mais usinabilidade, ou seja, facilidade de ser trabalhado nas máquinas operatrizes, como tornos e fresadoras.
Com o Sonda IV foi construída também a primeira Torre Móvel de Integração, para posicionamento vertical do foguete no lançamento, indispensável para foguetes maiores, que não podem ser lançados sobre trilhos colocados em rampas inclináveis. Paulo Victor, aposentado em 1981, foi convidado para assistir ao terceiro lançamento de um Sonda IV, no dia 8 de novembro de 1987, na base de Barreira do Inferno, perto de Natal. No lançamento estavam também o presidente José Sarney, o ministro do Exército e outras autoridades. Paulo Victor explica ao repórter. “É um foguete de quatro estágios. No primeiro, são quatro propulsores em torno da carcaça central. No lançamento, me lembrei de que nós começamos tudo há mais de 30 anos. Um propulsor do primeiro estágio apagou. Mesmo assim, o Sonda IV subiu sob controle. Tivemos de destruí-lo, mas o controle direcional funcionou. Tínhamos um foguete guiável.”
Paulo Victor interrompe a conversa por segundos. Tem os olhos cheios d’água. Busca se controlar. Retoma a narrativa. “É um resultado fantástico. Só de lembrar me emociono. Muita gente não vibra com isso, não sabe avaliar.” O redator do texto do livreto da AEITA (Associação dos Engenheiros do ITA) escreveu, então, com razão: “Paulo Victor é um militar. Militar não é gente simples de entender. Militar é gente que pensa na defesa do Brasil, da Pátria. Coisas meio fora de moda hoje, quando se difunde a tese de que militar deve cuidar das PMs, ocupar morros de favelas rebeladas, impedir que narcotraficantes entrem na Amazônia. Militar tem que cuidar da produção, do controle e do disparo de armas. Todo mundo gosta da paz. Mas a história das nações não é só de paz. As nações mais fortes se impõem às mais fracas. Paulo Victor é um nacionalista, desses que acham que é preciso voltar a cantar o Hino Nacional nas escolas. ‘O País precisa de determinação, de perseverança’”.
Em 1979, o programa de foguetes da época de Paulo Victor deu um salto de qualidade, transformou-se na Missão Espacial Completa Brasileira (MECB), visando construir um Veículo Lançador de Satélite (VLS), com capacidade de colocar em órbita satélites artificiais da Terra. O desenvolvimento de foguetes espaciais capazes de colocar uma carga mais pesada em órbita significa ter a capacidade de colocar em órbita também uma carga nuclear, para uma ação militar.
A história dos últimos anos é prova cristalina dessa conclusão. A primeira bomba atômica foi despejada pelos americanos sobre Hiroshima em 1945. Em 1949, a URSS construiu a sua. Em 1952, os americanos produziram a bomba H, a superbomba, baseada nos mesmos mecanismos que promovem a queima de hidrogênio no centro do Sol com monumental liberação de energia. Em 1953, os soviéticos repetiram o feito. E com um avanço em relação à experiência americana: a bomba era do tipo delivery, não era um trambolho pesadão que precisava ser carregado por uma superfortaleza voadora, lenta e vulnerável; podia ser carregada na ponta de um míssil suficientemente potente. Os soviéticos tomam, então, a dianteira na construção desse míssil.

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