Eduardo Guimarães:
Inflexão das Américas

Por questões ideológicas e em razão da afasia jornalística dos grandes meios de comunicação latino-americanos, esta parte do mundo discute muito pouco um dos fenômenos sócio-políticos continentais mais importantes da história da humanidade.

As décadas de 1980 e de 1990 foram marcadas pelo aprofundamento de políticas públicas praticamente genocidas - e desastrosas, do ponto de vista econômico. Pelo liberalismo econômico e pela indiferença das elites indo-européias latino-americanas e estadunidenses diante dos dramas sociais da região, vigentes desde a descoberta do continente americano, as Américas foram transformadas em um inferno. Não foi por outra razão que, da Patagônia ao Alasca, este continente sempre teve na injustiça social sua característica maior, em que pesem as bolhas de um crescimento econômico socialmente excludente que geraram uma desigualdade entre as maiores do planeta nas três Américas, com exceção do Canadá. A eterna iniqüidade institucional das três Américas, de inspiração ianque, evidencia-se só agora que o desastre se abateu sobre os EUA. As mídias continentais sempre trataram de esconder quanto o país mais rico do mundo é socialmente injusto, o que produz o absurdo de tal país abrigar taxas terceiro-mundistas de pobreza.

Enquanto distraía o mundo com a “pobreza” cubana, país pobre em que a pobreza é muito menor do que nos EUA, este sempre abrigou legiões de excluídos negros e hispânicos, que vêm vivendo como se estivessem num país periférico. Sempre digo que confio no processo civilizatório, pois a dinâmica da epopéia humana sempre tratou de corrigir desvios e de soterrar os impérios hegemônicos, e isso sempre se deveu à crença irracional das elites de ontem e de hoje em que é possível manter as massas conformadas com a carestia, com a iniqüidade, com a indignidade, com o caos social. A Europa, bem mais antiga e socialmente desenvolvida que o Novo Mundo, entendeu há muito que sociedade nenhuma pode avançar, tornando-se segura e próspera, convivendo com assimetrias sociais que invariavelmente empurram grandes contingentes de cidadãos para dramas insustentáveis.

Porém, tornando-se um oásis num mundo desigual, o Velho Mundo atraiu imigração de todas as partes, fazendo dos estrangeiros que por lá iam tentar a vida a classe excluída que exterminara entre seus nacionais. Ainda assim, a Europa não deixou que o caos social transformasse as nações que a compõem nas verdadeiras zonas de guerra civil não-declarada que há na América Latina, ou no campo minado por guetos em que se transformou o império americano. No limiar do novo milênio, porém, começou pela América do Sul uma inflexão política e, em alguma medida, ideológica no subcontinente. Foi a partir da Venezuela, país rico em petróleo, riqueza que sempre fora usada para o deleite de castas enquanto uma assustadora maioria dos venezuelanos chafurdava na iniqüidade social. O regime do presidente Hugo Chávez começaria a apresentar resultados sociais vistosos, como a eliminação inquestionável do analfabetismo em território venezuelano, feito que inclusive foi reconhecido pela ONU.

A partir do esgotamento do modelo ultraliberal implantado pelo consenso americano-britânico em meados da década de 1980, o ex-presidente americano Ronald Reagan e a então premiê do Reino Unido, Margareth Tatcher, impuseram à América Latina um modelo econômico que tratou de aprofundar as assimetrias sociais, que cresceram junto com os desastres econômicos que se abateram sobre países como Brasil e Argentina, entre outros, tudo por conta daquele consenso americano-britânico, implementado na América pobre por políticos como Carlos Saúl Menem, Fernando Henrique Cardoso ou Alberto Fugimori, entre outros. A inflexão político-ideológica das Américas, iniciada a partir da Venezuela, espraiou-se pela América do Sul, inserindo-a num processo de redução da desigualdade e de crescimento econômico que contaminou todos os países da região, com exceção de Peru e Colômbia, onde conjunturas políticas peculiares continuam impedindo a evolução político-ideológica, econômica e social experimentada pelos vizinhos.

A despeito da reação das elites regionais e dos dois governos republicanos do demente George Bush, eleito (por pouco) pelos delírios hegemônicos da metade fanatizada da sociedade estadunidense, eclodiram tentativas dos EUA de impor seu poder à força pelo mundo afora, inclusive com tentativas de derrubada dos governos populares eleitos na América Latina, os quais haviam passado a desafiar abertamente Washington.

A incursão ditatorial e fascista dos EUA no Oriente Médio, que se deu através da força e foi produto do delírio de Bush, desviou seu governo belicista de importantes assuntos internos, tornando o presidente americano um senhor da guerra que deixou a economia degringolar apostando no controle da humanidade através de seus exércitos. Deu no que deu. A hecatombe econômica se implantou e desastres militares foram produzidos no Iraque e no Afeganistão, nos quais táticas de guerrilha como as vietnamitas barraram de novo a vitória americana, abrindo a potência hegemônica à inflexão político-ideológica latino-americana. Ou seja: em vez de o autoritarismo bushiano barrar a inflexão latino-americana, esse delírio de poder fez com que ela fosse pegar os reacionários republicanos no quartel-general deles.

Barack Obama vem se somar a Hugo Chávez, a Evo Morales, a Rafael Correa, a Michele Bachelet, a Luiz Inácio Lula da Silva, a Cristina de Kirschner, a Tabaré Vazquez, a Fernando Lugo, a Daniel Ortega e a outros líderes de esquerda que vêm subindo ao poder nas três Américas, ainda que muitos reneguem o rótulo de esquerdista ao candidato democrata à presidência dos EUA, ignorando que ele representa a esquerda possível naquele país. A derrota republicana deverá se materializar nos próximos dias e significará, também, a queda da orquestração da reação conservadora que vem tentando derrubar os governos supra mencionados. A eleição de Obama será a pá de cal sobre a direita golpista latino-americana e deixará à própria sorte a mídia que lhe serve de arma e de escudo.

Comentários

ARY TAUNAY FILHO disse…
Eduardo,
Sua visão é limpa e clara. O eleitor brasileiro é desinformado da verdade pela atuação infame da mídia direitista, que teima em querer voltar ao poder para fazer o Brasil retroceder politicamente, socialmente e economicamente.
O trabalho de conscientização do povo está por conta de poucas revistas e inúmeros blogs, que só atingem quem tem PC.
Que Deus nos ajude e não nos levem mais uma vez para a contra-mão da história.
Ary Taunay Filho