Gilberto Freyre: uma biografia cultural´ lança luzes sobre os anos de formação do autor. A obra de Gilberto Freyre, vai-e-volta, ganha novas interpretações. Revisitado por muitos sociólogos e historiadores, Freyre - depois de anos de estudos em universidades dos Estados Unidos e da Europa - centra seu olhar para o Brasil. Um país em construção, que passava do Império para a República de forma desordenada. Talvez, anárquica.
Muitos intelectuais brasileiros tentaram interpretar o Brasil com olhos estrangeiros. Não é o caso de Freyre. Agora, nos 20 anos da morte do autor de “Casa-Grande & Senzala”, um estudo promete muita polêmica - “Gilberto Freyre: Uma Biografia Cultural” (Editora Record, 714 páginas, R$ 80,00), do antropólogo Rodrígues Larreta e do professor de Letras Guillermo Giucci, ambos nascidos no Uruguai. O livro percorre os anos de juventude de Freyre (1900-1936), traça muitos aspectos de sua formação cultural e suas principais contribuições sociológicas. Mas a obra vai mais além: mostra um Freyre em conflito com as culturas por onde passou - Estados Unidos e Europa; conta as experiências homoeróticas de Freyre -“quando na Alemanha ele deixaria mastubar-se por um belo adolescente nas ruas escuras de Berlim”. O objeto dos dois autores, no entanto, são os estudos de Freyre, seus mestres e amigos. O sociólogo aprendeu que a presença de uma democracia étnica leva a uma democracia social. Freyre, afinal, percorreu os difíceis meandros de uma nação que saía do sistema escravista durante o Império para a aventura da modernidade. Para isso, os autores utilizaram os próprios textos de Freyre - os principais livros, ensaios, artigos e sua correspondência são analisadas em detalhes. Dos Estados Unidos seus primeiros mestres - “A cultura americana encontra-se na alma nacional, não nas galerias de arte e nos livros estrangeiros. Quando aprenderemos a ser orgulhosos? Só o orgulho é criativo”. Lição que trouxe, mais tarde, para seus estudos sobre o Brasil. Entre outras lições, Gilberto Freyre aprendeu que a “força de interpretação pessoal supõe não aceitar o real como um dado, mas reconhecê-lo como uma fabricação”. Tanto nos Estados Unidos, quanto na Europa, Freyre conviveu com importantes intelectuais, que formaram um grande e sólido mosaico para a construção de sua obra. Mudanças - Os anos 20 eram de muitas mudanças no mundo. Mudanças que afetaram profundamente o jovem brasileiro dos trópicos, mas nunca abalaram sua fé na tradição. A biografia cultural de Freyre percorre todas essas transformações, os passos de Freyre pela América do Norte e pelo Velho Mundo. Do estrangeiro, Freyre escrevia suas impressões para o “Diário de Pernambuco”: relatos repletos de interpretações, quase todas comparativas. Escrevia aos amigos brasileiros - Oliveira Lima, Manuel Bandeira e José Lins do Rego, principalmente. Sempre se referia a Franz Boas, um dos seus mais influentes professores.“Apesar do horizonte científico de seu projeto e da aparência positivista de suas pesquisas, repletas de detalhes e descrições precisas de objetivos, a perspectiva de Boas situa-se no contexto cultural da época e no âmbito de uma sensibilidade moderna com a qual Freyre tem fortes elos”, dizem os autores, apontando que no estilo do alquimista nietzschiano, capaz de descobrir ouro nos materiais mais abjetos, Freyre ausculta a escravidão para nela encontrar a singularidade humana: — Os escravos, em geral, não se asfafavam nos trabalhos domésticos. Era assim tanto nas casas-grandes dos engenhos e fazendas como nos grandes sobrados igualmente patriarcais das cidades. É verdade que, nos meados do século passado, a propaganda antiescravista britânica muito comentou o “cruel tratamento dos escravos” no Brasil. Mais tarde, esses sombrios comentários ingleses foram repetidos no Brasil por oradores brasileiros contrários ao cativeiro - entre eles Joaquim Nabuco e Rui Barbosa - homens inflamados pelo idealismo liberal e burguês (...) A linguagem empregada por tais oradores foi tão enfaticamente persuasiva que o brasileiro médio de hoje ainda acredita ter sido a escravidão no Brasil, toda ela, realmente cruel. Na verdade, a escravidão no Brasil agrário-patriarcal pouco teve de cruel. O escravo brasileiro levava, nos meados do século XIX, vida quase de anjo, se compararmos sua sorte com a dos operários ingleses, ou mesmo com a dos operários do continente europeu, dos mesmos meados do século passado. Idéias como as relações de trabalho no Brasil Império não foram nada simpáticas aos intérpretes do Brasil da época. E não eram poucos. Freyre começou a semear em solo brasileiro uma gama de inimigos. Como também sua visão sobre as condutas sexuais nos tempos do Império, consorciadas à escravidão. “Existiam haréns disfarçados, constituídos por jovens mulatas à disposição dos patrões e de seus filhos. A paixão dos brasileiros pelas mulheres não conhece freios”, grafou. O estudo de Freyre destaca as rotinas diárias dos escravos e dos senhores do engenho, descrevendo cuidadosamente detalhes da vida material, como os alimentos e os mobiliários. A preocupação com as doenças e com a higiene assina o interesse pelas articulações ecológicas no contexto social. Sem falar na religião, que acompanhava os brasileiros em suas festas e lhes permitia reconciliar-se com a dor do mundo, ajudando-os a morrer. Freyre também combateu, no campo das idéias, os modernistas - era um tradicionalista à maneira aristocrática, segundo o amigo José Lins do Rego. “Pouco tempo depois, em maio de 1923, Freyre critica a falta den visão de mundo dos modernistas e acusa a juventude paulista da “neurose chamada futurismo”. — A rebeldia juvenil que se justifica na Europa, onde o cansaço dos museus e das bibliotecas abranda o espírito criativo da própria juventude, é inadmissível no Brasil”. Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo. Cidades, regiões, idéias e homens. Nada fugiu do olhar perscrutante de Gilberto Freyre. Da sua passagem pela política em Pernambuco, quando chefe de gabinete do governo Estácio de Coimbra, ao jornal A Província, à revolução de 30 e ao exílio de Freyre em Portugal. Todos estes movimentos de homens despertaram no estudioso idéias até então inexploradas pelos positivistas de plantão. Polêmica - Com toda a polêmica criada em torno de “Gilberto Freyre - Uma Biografia Cultural” -, os uruguaios Guillermo Diucci e Enrique Rodrígues Larreta deram um das mais importantes contribuições para os estudos em torno do mestre do Apicucos, ou seja, pensar sociologicamente e refletir sobre as relações sociais imediatas de seu meio e observar o entorno de forma metódica. “Esse estilo etnográfico de forte sentido empírico e particularista, que se desenvolveu sobretudo nos Estados Unidos, na sociologia da Escola de Chicago, exercerá considerável influência sobre Gilberto Freyre. — A latinidade reina mas não governa; a Europa reina mas não governa - governam as vozes da África e as mysteriosas vozes da própria terra americana - e sociologicamente as superstições de um povo teem mais materia que a sua fé oficial, que o seu credo, a sua liturgia (...) A Europa reina, mas não governa em largos trechos. Noutros nem reina nem governa - não de certo das muitas unidades meramente políticas em que balkanicamente se divide a América, mas das verdadeiras unidades, físicas, culturais, económicas, sociais. A idéia de “Europa” reinando - apontam os dois historiadores -, mas não governando no Brasil, será fundamental para a construção de “Casa-Grande & Senzala”. O ponto de partida de Gilberto Freyre é o encontro entre culturas. O que interessa é apresentar a matriz da formação nacional do Brasil. Na realidade, a história encontra-se explicitamente lida a partir da problemática da construção nacional. Até hoje “Casa-Grande & Senzala” é um dos livros basilares do Brasil, com seus temas característicos da nossa formação - “a moura encantada, o caráter feudal da colonização, a avaliação positiva do esforço do colonizador, a importância do açúcar, a influência dos jesuítas e a atenção para as relações sociais”. Para entendermos melhor a extensa obra de Gilberto Freyre, principalmente “Casa-Grande”, a atual biografia é um prato cheio. Fácil de ler, sem ranço acadêmico, o livro passeia tanto pelo homem - Gilberto Freyre -, quanto por seus mestres e suas obras. Fonte: Diário do Nordeste.

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