Um país inverossímil
Escrito por Lula Miranda - Fazendomédia

Já faz alguns anos, venho aproveitando minhas férias para conhecer alguns países da América Latina. Já conhecia Cuba e Chile e, nos últimos anos, visitei a Argentina e o Uruguai - mais precisamente, as cidades de Buenos Aires e Montevidéu. Porém, para meu espanto [e, creio, certamente para o seu, caro(a) leitor(a), como veremos a seguir], conheci também um outro país, um dos mais ricos e "desenvolvidos" do promissor "continente latino", onde, por estranho paradoxo e injustiça, as condições de vida são das mais adversas, a desigualdade social é algo estarrecedor, o IDH, vexatório - ou seja, o povo não usufrui como deveria da riqueza da nação. Nesse país, acontecem coisas pouco prováveis que contando ninguém de fato acreditaria. Porém, vou gastar algumas palavras aqui tentando convencê-lo de que tal improvável país e realidade existem mesmo. Vamos lá.

Para começo de conversa, esse país tem quase duzentos milhões de habitantes, mas a imensa maioria de sua população vive em condição de absoluta ou relativa pobreza. A concentração de renda é aviltante. A escravidão foi oficialmente abolida há quase cento e vinte anos, entretanto os negros e seus descendentes continuam vivendo em malocas e/ou favelas - de tal sorte, veja bem, que aos olhos de um estrangeiro parece que a escravatura acabou "ontem"(!). O salário mínimo, mas também o salário médio da população economicamente ativa e as aposentadorias, mal dão para o cidadão pagar suas despesas com alimentação e transporte - ou seja, fica faltando dinheiro para pagar o aluguel (ou o financiamento da casa própria), para custear a educação dos filhos, para comprar remédios, roupas etc - lazer então nem pensar!

Assim como os seus vizinhos, esse país foi colonizado e disputado/saqueado por uma ou mais nações do velho mundo, e suas terras foram, de início, divididas em capitanias hereditárias - em seguida vieram os imigrantes para tomar posse de seu quinhão de riqueza: holandeses, espanhóis, italianos, alemães, japoneses etc. Até hoje, e olhe que já se passaram séculos do descobrimento e colonização!, os pouquíssimos ricos que ainda existem (e até mesmo os indivíduos pertencentes às classes médias) são os descendentes desses "desbravadores". Os subalternos são os descendentes de índios e negros - e até mesmo dos mestiços e dos hoje empobrecidos criollos. Esse fenômeno, cá para nós, também não é exclusivo desse país. Verifica-se o mesmo no Chile, na Argentina, no Uruguai, Venezuela e, estou certo disso, em todos os demais países da AL, quiçá do resto do mundo. Não precisa ser nenhum antropólogo para perceber isso. Nesse país, os filhos dos índios ainda morrem de inanição, por falta de uma assistência mínima por parte do Estado. Os descendentes dos escravos estão nos presídios ou segregados nos bairros pobres e periféricos. Nesse país, os que lutam por uma distribuição de terras mais justa são tratados como bandidos.

A violência grassa como uma praga por todo o território nacional. Nas grandes e principais cidades a situação já é de uma indisfarçável convulsão social. Existem bairros completamente dominados pelo crime organizado, onde não se percebe, nem ao longe, em absoluto, a presença do Estado. Cidadãos são mortos, todos os dias, vítimas de bala perdida em tiroteios travados, sob a luz do sol, entre traficantes, ou ladrões de banco, e policiais. Crianças e anciões são covardemente assassinados numa macabra rotina. Nesse país, quase sempre, confundem-se policiais com bandidos (e vice-versa). Os cidadãos morrem, portanto, vitimados pela violência dos bandidos ou da própria polícia.

Para se ter uma idéia do paradoxo e da aparente absoluta falta de verossimilhança, vejamos mais uma curiosa peculiaridade. Esse país, como todos os demais, necessita das receitas do Turismo, não só para equilibrar suas contas externas como para desenvolver algumas economias regionais - que sobrevivem praticamente das receitas advindas da exploração racional (e legal) dos serviços de turismo. Afinal esse é um país "abençoado por Deus e bonito por natureza". Porém, a desigualdade social e a violência são tão mortalmente (oni)presentes nessa sociedade, que, quase todo bendito mês, ônibus conduzindo turistas são assaltados quando saem dos aeroportos em destino aos hotéis. E, o que é pior, esses desavisados visitantes são, muitas vezes, assassinados barbaramente, com requintes de crueldade - episódios que, cá para nós, não servem propriamente como atrativo para turista algum. Não bastasse isso, esse mesmo país vive, há mais de seis meses, um verdadeiro pandemônio (sabotagem?) no seu serviço de tráfego aéreo; nos check-in ou nas filas de embarque, nos aeroportos, vêem-se filas quilométricas, e passageiros chegam a enfrentar atrasos de mais de 8 horas em aeroportos apinhados. Inacreditável!

Nesse país, a educação e os serviços de saúde beiram a iniqüidade. A corrupção é uma outra praga endêmica: os políticos, de praticamente todos os partidos, loteiam, como chacais, a máquina pública entre seus correligionários e cabos eleitorais, geralmente com indivíduos de competência duvidosa, para dizer o mínimo. A imprensa é conivente - para se ter uma idéia, os principais veículos e meios de comunicação estão nas mãos das oligarquias políticas e econômicas: é o chamado monopólio da informação. Não existe, pois, a circulação livre de opiniões. A democracia é "de fachada". A promiscuidade é escandalosa. Difícil mesmo crer que exista uma realidade assim. Você certamente não vai acreditar, prezado leitor, mas apesar desse verdadeiro descalabro em que vive esse país, apesar de viverem uma situação limite e uma dívida social secular, lá a imprensa hoje só fala em preenchimento de cargos e ministérios por parte da coalizão que comanda o atual governo. Pasme, é mesmo muito difícil de acreditar, chegam a perder laudas e laudas de jornais e revistas, preciosos minutos na TV, falando sobre a disputa pela Presidência da República em 2010 (sim, em 2010!). Não custa lembrar que o governo atual foi recém-reeleito, por larga margem de votos, e estamos ainda no começo do ano de 2007. Ademais, nem parece que o país tem tantos problemas prementes/urgentes para enfrentar e solucionar. Ou seja, as questões de fundo do país ninguém discute - ou discute-se de modo insuficiente ou enviesado. Essas questões são para sempre, de modo conveniente e infame, adiadas pelos donos do poder de fato.

Uma coisa eu aprendi nesse meu breve giro pela América Latina: é viajando, e assim conhecendo outras realidades, que a gente melhor conhece o país em que vive. Deus nos livre de viver em um país assim! Não é mesmo?

Frase do dia:

"Estamos diante de uma mídia que não reflete sobre si mesma e que é, portanto, espelho e produtora de indivíduos que não refletem sobre si mesmos".
(Professor Evandro Vieira Ouriques)

O INTERNAUTA FALA: Manuel disse... belo artigo, admiro a coragem que tem para escrever a realidade, força e continue a falar a verdade nada serve esconder o sol com a peneira.

Comentários

Anônimo disse…
belo artigo, admiro a coragem que tem para escrever a realidade, força e continue a falar a verdade nada serve esconder o sol com a peneira.